quinta-feira, 5 de maio de 2011

São José Operário

 
        "No dia 1.º de Maio de 1955 - escreve uma testemunha presencial- Roma era uma agitação de gente simples e morena, com olhar claro e espontâneo. Aqui e acolá, nos bares e ruas que rodeiam o Vaticano, grupos de homens, mulheres e crianças, misturados em alegre algazarra, largavam a leve bagagem das suas mochilas e esgotavam xícaras de bom café. À volta deles parecia soprar um ar novo, ainda não estreado. Até ao ponto de o semblante da Cidade Eterna, acostumado a todos os acontecimentos e a todas as extravagâncias de todos os povos da terra, parecer ensombrado diante do alude novo de corpos duros e curtidos, e de almas ingênuas, que ultrapassavam todo o previsto».
         Dir-se-ia que havia um pressentimento. Quando aqueles grupos confluíram numa das grandes praças romanas e ao longo das amplas margens do Tibre, e principiaram a sua marcha para o Vaticano, alguma coisa flutuava no ambiente. A rua da Conciliação vibrava com um eco novo, o das rotundas vozes dos operários do mundo que, ao compasso de entusiásticos hinos e debaixo dos seus estandartes e cartazes, representando todos os seus irmãos do universo, avançavam ao encontro do Papa.
         Era uma enchente imensa de vida, de calor e "entusiasmo. Diante do roncar das camionetas, carregadas de trabalhadores, que avançavam com os seus instrumentos de trabalho para a Praça de S. Pedro, corria uma multidão alegre e simples, gritando formosos motes: “Viva Cristo Trabalhador! Vivam todos os trabalhadores! Viva o Papa!”. Aquelas 200.000 pessoas sobrepunham-se ao velho latejo de ódio e de morte, substituindo-o por outro, o de ressurreição e de vida.
         Ouçamos de novo o mesmo cronista: “Com espírito novo e consciência clara da nobreza trabalhadora, a imensa multidão foi enchendo, em crescente muralhada, a monumental Praça de são Pedro. As fontes estavam transformadas em cachos humanos e, dominando a excitada concentração, o obelisco de Nero parecia um dedo luminoso a apontar obstinadamente o caminho dos luzeiros, o único capaz de remir o doloroso mundo do trabalho. Mesmo aos pés da basílica detinha-se a maré humana e, debaixo da varanda do centro da igreja mais monumental do cristianismo, levantava-se o vermelho estrado papal. Depressa apareceu nele a branca figura do Vigário de Cristo, enquanto a Praça inteira vibrava numa ensurdecedora gritaria e num contínuo agitar de lenços e cartazes. As fontes pareciam abrir as suas bocas para gritar, o obelisco alongava-se mais e mais para o céu e a majestosa colunata de Bernini exalava um movimento de gozo e de glória. Tudo se movia à volta do Cristo na terra, e pelas cornijas e capitéis -”. como bando de pombos ao vento - iam saltando os gritos de paz, trabalho e amor”.
         Na imensa Praça foram-se destacando pequenos grupos de operários, portadores de mil presentes vibrantes que o mundo do trabalho oferecia ao Papa. Vimos esses operários subir os degraus do estrado e ajoelhar-se, com as suas mãos grossas e toscas, diante do Cristo visível na terra. Alguns com serenidade diziam uma frase bem aprendida. Outros, vencidos pelo momento grandioso, esqueciam-na e improvisavam ricas espontaneidades, ou não faziam senão olhar para o Papa, cara a cara, e chorar. A Praça continuava a gritar pela sua descomunal boca de 240 metros de largura e voando nas asas dos 200.000 corações de operários. Só quando o Papa se levantou, ficou muda e surpreendida, como deserto silencioso. Dominando um silêncio palpitante vibrou a voz do papa Pio XII:
         Quantas vezes nós manifestamos e explicamos o amor da Igreja para com os operários! Apesar disso, propaga-se muito a atroz calúnia de que "a Igreja é a aliada do capitalismo contra os trabalhadores". Ela, mãe e mestra de todos, teve sempre particular solicitude pelos filhos que se encontram em condições mais difíceis, e também, na realidade, contribuiu notavelmente para a consecução dos apreciáveis progressos obtidos por várias categorias de trabalhadores. Nós mesmos, na radiomensagem natalícia de 1942, dizíamos: "Movida sempre por motivos religiosos, a Igreja condenou os diversos sistemas do socialismo marxista e condena-os também hoje, sendo dever e direito seu permanente, preservar os homens das correntes e influxo que põem em perigo a salvação eterna deles".
        “Mas a Igreja não pode ignorar ou deixar de ver que o operário, ao esforçar-se por melhorar a sua própria condição, se encontra diante duma organização que, longe de ser conforme à natureza, contrasta com a ordem de Deus e com o fim que Ele assinalou aos fiéis da terra. Por falsos, condenáveis e perigosos que tenham sido e sejam os caminhos seguidos, quem, e sobretudo que sacerdote ou cristão, poderá tomar-se surdo ao grito que se levanta da profundidade e que, no mundo do Deus justo, pede justiça e espírito de fraternidade?”
         Apesar disso, a festa, com toda a sua beleza, poderia ter ficado como uma das muitas que se têm celebrado na magnífica Praça de são Pedro e o discurso como um de tantos entre os pronunciados pelo papa Pio XII. Não foi assim. Por boca do Sumo Pontífice, a Igreja dispôs-se a fazer, com a festa do I. o de Maio, o que tantas vezes fizera, nos séculos da sua história, com as festas pagãs ou sensuais: cristianizá-las.
         O 1.º de Maio nascera, no calendário das festividades, sob o signo do ódio. Desde meados do século XIX, essa data identificara-se, na memória e imaginação de muitos, com as alamedas e as avenidas das grandes cidades cheias de multidões com os punhos cerrados. Era dia de greve total em que o mundo dos proletários recordava à sociedade burguesa até que ponto tinha descido, à mercê do ódio dos explorados. E essa festa, a festa do ódio, da vingança social e da luta de classes ia transformar-se por completo numa festa litúrgica (atualmente memória)...
         Plástica, colorida e vital vem a ficar a dignidade do trabalho quando a encontramos, não por meio duns parágrafos oratórios, mas encarnada na sublime simplicidade da vida, nada menos que do pai putativo de Jesus Cristo... Qualquer de nós, consultado, teria sido de opinião ser preferível que Jesus Cristo, escolhido para trazer ao mundo uma mensagem que forçosamente haveria de chocar com o mundo de então, ser preferível, dizíamos, que nascesse rodeado por isso a que habitualmente chamamos prestígio social: de família ilustre, sem angústias econômicas, nalguma cidade como a antiga Roma, que se mostrasse social no andar dos tempos.
         Mas não foi assim, antes pelo contrário. Jesus escolhe para Si, para sua Mãe, para são José, um ambiente de pobreza autêntica. Entendamo-nos: não ambiente de pobreza mais ou menos convencional, de vida simples mas livre de preocupações econômicas, mas a áspera realidade de ter de ganhar o pão trabalhando, de ter de gastar as magras economias no desterro, de ter de sofrer muitas vezes a amargura de não poder dispor nem sequer do necessário...
        O certo é que a Virgem Santíssima teve de lavar as humildes escadas da casita, de varrer a pobre oficina e de preparar as frugais refeições. E, junto a ela, também S. José haveria de corresponder-lhe com sua parte nas conseqüências de tanta pobreza.
        Sabemos que foi carpinteiro. Algum dos Padres apostólicos, S. Justino, chegou a ver toscos arados romanos, feitos na oficina de Nazaré pelo patriarca são José e também por Jesus. Fora disto, tudo o mais são conjecturas. Mas conjecturas constituídas com base de certeza, se é lícito falar paradoxalmente, pois, por muito que desejemos forçar a imaginação, sempre resultará que foi dura a vida dum pobre carpinteiro de aldeia, que a essa condição sua juntou as tristes conseqüências de ter vivido algum tempo no desterro.
        Porque, se algumas economias houve, se alguma coisa chegou a valer a ferramenta, tudo foi preciso quando, em conseqüência da perseguição de Herodes, a Sagrada Família teve de ir para o Egito. Dura foi a vida lá. E dura também a vida depois do regresso.
        Neste ambiente viveu Jesus Cristo. E este é o modelo que hoje se propõe a todos os cristãos. Para que aprenda cada um a lição que lhe toca.
        Quer a Igreja que a memória de são José Operário sirva para despertar e aumentar nos operários a fé no Evangelho e a admiração e o amor por Jesus Cristo; sirva para despertar nos que governam a atenção pelos que sofrem e o desejo de pôr em prática aquilo que pode levar a uma ordem justa na sociedade humana; e sirva para corrigir, na sociedade os falsos critérios mundanos que em tantas ocasiões chegam a penetrá-la por completo. .
        Terminemos com esta bela oração de João XXIII, no 1.º de Maio de 1959:
       “Ó glorioso S. José, que velaste a tua incomparável e real dignidade, de guarda de Jesus e da Virgem Maria, sob a humilde aparência de artífice, e com o teu trabalho Sustentaste as suas vidas, protege com amável poder os teus filhos que estão a ti especialmente confiados.
        Tu conheces as angústias e sofrimentos deles, porque tu mesmo experimentaste isto ao lado de Jesus e de sua Mãe. Não permitas que, oprimidos por tantas preocupações, esqueçam o fim para que foram criados por Deus; não deixes que os germes da desconfiança lhes dominem as almas imortais. Recorda a todos os trabalhadores que - nos campos, nas oficinas, nas minas e nos laboratórios da ciência - não estão sós para trabalhar, gozar e servir, mas que junto a eles está Jesus com Maria, Mãe sua e nossa, para os suster, para lhes enxugar o suor, e mitigar as fadigas. Ensina-lhes a fazer do trabalho, como fizeste tu, instrumento altíssimo de santificação”.

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